Tinha 19 anos, cabelos castanhos longos e ondulantes, uma tez branca e iluminada. Era bela. Muita bela. Aconchegado a ela, um filho, recém-nascido, anjo adormecido. Eu tinha 8 anos e era inverno. No segundo intervalo da escola, desci para a voltar a ver. A minha escola ficava nas traseiras da Igreja de Santa Cruz do Bispo. Subíamos umas escadas com destino a uma sala que autorizava a entrada de luz através de uma única janela. Fazia frio quando estava frio, sentia-se um calor insuportável quando a primavera se vestia de verão.
Havia uma porta lateral que ia dar à igreja. Volta e meia, eu e uns amigos escapávamos à vigilância da professora para fanar hóstias e beber vinho. Era azedo e de má qualidade. As aulas eram por vezes interrompidas por homilias e choros abafados de dor e angústia. Em baixo da sala onde aprendíamos a somar números, situava-se a capela mortuária. Ver defuntos, naquela idade e naquela época, era normal. Por vezes sentíamos um apelo mórbido em invadir o espaço. Acontecia sermos enxotados. Normalmente a nossa presença era tolerada ou ignorada pelo coro de lágrimas e gritos que ouvíamos em silêncio. Uma vez uma senhora idosa, trespassada pela dor, pediu-me um abraço. Imaginava-me anjo na despedida do marido e companheiro de uma vida.
Quando visito a minha falecida avó e lhe acendo uma vela, falo com ela. No caminho de regresso, paro na morada eterna daquele bela criatura de 19 anos, que ao dar a luz uma vida sacrificou a sua, sem conseguir salvar o fruto do seu amor. Paro e penso naquele dia. Na dureza da existência humana. Com 8 anos, quase 9, aquela deusa ensinou-me o significado da palavra morte. E de como é importante vivermos a vida como se não houvesse amanhã. Nunca conseguimos cumprir este desígnio, já repararam?
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